
Apenas existir em espaços que não foram pensados para nós já causa um movimento de mudança, pouco a pouco.
ENTREVISTA: Koda Gabriel para o JULHO NB
Nino Cavalcante, autor e jornalista, entrevista Koda Gabriel para o Cadê LGBT.
A ideia de que pessoas LGBTQIAP´+ só escrevem romances é batida, mas ainda existe. Entretanto, todos os anos, autories queer do mundo todo provam o contrário, entregando histórias de suspense, horror, mistério, ficção científica e, até mesmo, eróticas, como é o caso de Koda Gabriel (ele).
Koda é programador, mineiro do interior, fã de RPG, fantasia e romances. Entre as publicações dele já escreveu histórias de romance jovens, como Ela, videogames e muito sobre nós, mas atualmente se aventura na escrita de contos eróticos e sedutores com o projeto Só uma rapidinha.
Com anos de experiência no mercado literário, convidamos Koda para bater um papo sobre ser um autor não binário no mercado editorial brasileiro e sobre as mudanças em sua própria escrita. Confira abaixo:
Nino Cavalcante: Para você, qual é a importância da presença de pessoas não binárias no mercado editorial?
Koda Gabriel: Eu vejo importância em um mercado diverso em todos os sentidos, em todas as áreas, e isso, naturalmente, precisa incluir pessoas não binárias. Cada indivíduo tem experiências e vivências únicas, demandas únicas, e coletivamente encontramos força pra defender e mostrar essas vivências e demandas para o mundo, para as outras pessoas. Então quando uma pessoa não binária se insere no mercado de editorial, ela tem a chance de mostrar para o mercado (e pro mundo), quem ela é, o que é ser uma pessoa não binária, e também vira um espelho de possibilidades para outras pessoas, que podem ver como é (e deve ser) possível ser o que a gente quiser ser. Claro, não é papel de ninguém carregar o fardo de educar todas as pessoas, mas apenas existir em espaços que não foram pensados para nós já causa um movimento de mudança, pouco a pouco.
NC: Você acha que, hoje, existe espaço para autores não binários no mercado editorial, em especial, nas editoras tradicionais?
KG: Acho que essa é uma pergunta complexa, porque espaço existe. Não acredito que exista um boicote ativo de pessoas não binárias, nem uma preterição explícita dessas histórias. Além disso, o número de publicações de autores não binários cresceu nos últimos anos, internacionais principalmente, mas nacionais também.
Entretanto, é sempre importante refletir sobre quem são essas pessoas, demograficamente, que tipo de histórias elas criam, o que está sendo aceito e publicado e o que não, além de onde está sendo publicado e onde não. No independente, existem pessoas não binárias publicando todo tipo de história, mas nem todo tipo de história chega no tradicional. Claro, nem tudo cabe no tradicional, mas isso é sempre verdade ou, por vezes, é só uma desculpa muito conveniente?
Também é importante lembrar que não binariedade não tem rosto e que nem toda pessoa não binária é pública sobre sua identidade, então é difícil obter números precisos sobre quem são essas pessoas, onde estão, quantas já publicaram tradicionalmente, se são agenciadas ou não.
Por último, eu pessoalmente acredito que, às vezes, para romper a barreira de números desiguais, precisamos de tratamentos desiguais. Já vi várias pessoas (de dentro do mercado editorial e leitores) desejando histórias de autores não binários, mas muito pouco sendo feito para tornar isso possível ou entender porque ainda não é possível. É o processo atual que dificulta o acesso dessas pessoas? É algo profundo e social que cria uma barreira de acesso que começa muito antes pra pessoas trans? O que pode ser feito para que as primeiras pessoas cheguem mais longe, abrindo caminho para que outras venham depois? E depois que essas pessoas são de fato publicadas, elas são lidas? São divulgadas? Têm seu trabalho reconhecido? É um problema que começa antes da publicação e não acaba depois dela, envolvendo todo mundo, de ponta a ponta.
NC: Como é a sua relação com o mercado se tratando da sua identidade? Você sente que há respeito do público e dos profissionais ao se comunicarem com você ou sobre você?
KG: Num geral, sinto que há bastante respeito. Na minha comunidade mais próxima é bem tranquilo, mas sair da bolha é sempre complexo. Quando tive um lançamento sáfico que chegou em bastante pessoas, tive um momento bem delicado porque comecei a ser marcado em avaliações e ler avaliações que sempre mencionavam "a autora". Era óbvio pra mim que essas pessoas não me conheciam e só falaram baseado no que acharam do meu nome ou da minha foto no final do livro, por causa da minha aparência. Quando algo meu viraliza em alguma rede social também costuma sair do meu controle. Mas tirando esses casos específicos, me sinto respeitado pela minha comunidade e pelos profissionais que trabalham comigo. Acho que passa muito pela postura que tenho nas redes sociais, por eu deixar sempre em evidência nos meus perfis meus pronomes/nome e a bandeira trans. Claro, isso tudo é online. Pessoalmente as coisas ficam mais complicadas e só quem já sabe quem eu sou costuma respeitar meus pronomes, num geral as pessoas tendem a assumir, mesmo eventos e usando bottons/indicativos de pronome.
MC: Hoje, você escreve contos eróticos de maneira independente, mas também já escreveu outros tipos de ficção voltadas para um público mais jovem. Como você enxerga essa mudança na sua carreira? Isso afetou o relacionamento com seu público e consigo mesmo?
KG: No quesito carreira, foi uma mudança que começou sem querer, mas logo se tornou muito natural e necessária. Comecei escrevendo pro juvenil porque eram as histórias que eu queria contar naquele momento, mas rapidamente vi que eu tinha mais histórias pra contar no adulto/erótico. No começo fiquei inseguro, mas com o tempo fiquei mais certo do que tinha escolhido e fui encontrando mais pessoas que gostavam das histórias que eu tenho pra contar. Algumas pessoas ainda preferem as histórias jovens, ou nem chegaram a ler as adultas, mas uma parte do público me acompanhou e outras pessoas chegaram, em especial depois do início do Só uma rapidinha. É uma jornada muito satisfatória pra mim, poder contar essas histórias safadas, queer e transviadas que eu gostaria de ler, que me divertem, e nitidamente divertem es leitores também. É o que quero pro resto da vida.
NC: No gênero hot, não conhecemos muitos autores não binários que se destacam. Em quais gêneros literários você sente falta de ver protagonistas e autores não binários?
KG: Sinto que no internacional e em gêneros de fantasia o número de autores não bináries aumentou bastante, o que é muito legal. No nacional, ainda falta caminho. Sobre o erótico em específico, acaba sendo um gênero preterido no meio tradicional, publicado por editoras específicas, quando publicado. Tem autores que explodem apesar disso (Katee Roberts, por exemplo, uma pessoa não binária) e outres que não necessariamente, mas ainda é um nicho que você precisa ser inserido, e bem inserido, pra conhecer quem está crescendo e quem está presente no cenário. De fora pode parecer que essas pessoas "não fazem sucesso/não se destacam", o que não é necessariamente verdade pra quem acompanha o nicho de perto. Independente disso, o que eu mais quero são pessoas escrevendo com autonomia sobre o que quiserem escrever, independente da pressão social ou de qualquer outra coisa, independente do gênero. De não bináries trambiqueiros a pessoas apenas vivendo suas vidinhas tranquilas, tudo que temos ainda é pouco perto do que podemos conquistar.
MC: Do que você mais sente orgulho enquanto uma pessoa não binária que escreve?
KG: Do caminho que percorri e do que conquistei escrevendo exatamente as histórias queer e transviadas que eu quero escrever. Muitas vezes eu quis desistir, parar, porque não parecia fazer sentido ou porque é, querendo ou não, um caminho tortuoso. Mas fico bastante feliz quando olho pra tudo que conquistei até agora, pra todas as pessoas que andam comigo e gostam do que eu faço, mesmo escrevendo histórias fora do padrão.

Muitas vezes eu quis desistir, parar, porque não parecia fazer sentido ou porque é, querendo ou não, um caminho tortuoso. Mas fico bastante feliz quando olho pra tudo que conquistei até agora, pra todas as pessoas que andam comigo e gostam do que eu faço, mesmo escrevendo histórias fora do padrão.