Este texto tem spoilers de Os sete maridos de Evelyn Hugo.
Ser uma pessoa LGBTQIAP+ hoje não é nada fácil, agora imagina na década de 60. Evelyn Hugo já era uma diva do cinema quando se apaixonou de verdade pela primeira vez, e sua vida já era pública antes mesmo de as primeiras polêmicas envolverem seu nome.
Ela era uma estrela que viveu (ficcionalmente, embora muitas pessoas acreditem que Evelyn Hugo existiu de verdade) em uma época pré-Stonewall. Eu era só uma pessoa relativamente desconhecida vivendo nos anos 2020. Mas, assim como a Evelyn, precisei me esconder por muito tempo, e ainda escondo partes de mim por medo do como as pessoas vão reagir.
Se ela tivesse mesmo existido, nós duas não compartilharíamos a mesma época, não viveríamos no mesmo tipo de cenário para pessoas LGBTQIAP+, porque as coisas mudaram muito. Mas, se mudaram tanto, por que tanta gente ainda precisa se esconder?
Me escuta, Celia. Eu te amo. E por isso não posso deixar você jogar fora tudo o que conquistou — e todo o talento incrível que tem — assumindo uma posição que não vai ser apoiada por ninguém.
Prestes a completar 80 anos, a lendária atriz Evelyn Hugo decide contar sua história exclusivamente para Monique Grant, uma jornalista que ainda está no começo de sua carreira. Marcada por 7 maridos, muito glamour e também muitas polêmicas, a vida de Evelyn também é cheia de segredos e sacrifícios feitos por amor.
Mas o que mais Evelyn tem para contar além do que todos os tablóides de Hollywood já não contaram? E por que logo agora?
Todo mundo que eu amei já morreu. Não tenho mais ninguém a quem proteger. Ninguém mais por quem mentir, a não ser por mim mesma.
Eu poderia dar centenas de razões para Os sete maridos de Evelyn Hugo ser um dos meus livros preferidos da vida, mas hoje quero falar especificamente dessa identificação que sempre tive com ela, mesmo que nossas realidades sejam completamente diferentes.
Para muito além da sexualidade, eu e Evelyn compartilhamos, por muito tempo, o sentimento de precisar esconder aquilo de mais bonito que tínhamos, porque o mundo é cruel. Era cruel no século passado e ainda é cruel hoje. Era cruel quando eu descobri que estava apaixonada por uma menina, quando arrisquei amá-la e precisei escondê-la.
E quantos de nós já não passamos por isso? Quantos de nós já não choramos sozinhos depois do fim de um relacionamento sem poder contar para ninguém porque estávamos tristes? Quantos não precisaram pegar toda a felicidade que sentiam e esconder bem fundo no peito para ninguém desconfiar? Quantas mãos dadas soltamos quando nos olharam torto na rua? Quantos lugares deixamos de frequentar por medo?
O mundo é cruel e ninguém está disposto a estender a mão a ninguém. Quando perdermos nosso trabalho e nossa reputação, quando perdemos nossos amigos e, de quebra, todo o dinheiro que temos, vamos ficar na rua da amargura.
Uma pesquisa recente do Datafolha diz que 8 em cada 10 brasileiros acham que homossexualidade deve ser aceita, uma mudança absurda se comparamos com décadas atrás. Mas, ainda assim, sair do armário não é algo tão confortável quanto possa parecer se a gente analisar só o que vê nas nossas bolhas em redes sociais.
Ouvi, mais de uma vez, que Evelyn tinha sido covarde ao não assumir seu amor por Celia publicamente. Ouço, muito mais do que gostaria de ouvir, que pessoas que não se assumem ou não assumem relacionamentos fora do padrão são covardes, não amam o bastante, não merecem o amor de quem já saiu do armário e enfrentou o mundo.
O que ninguém conta é que enfrentar o mundo é difícil. O medo de ser rejeitado persegue pessoas LGBTQIAP+ desde que somos crianças e não acaba quando ficamos adultos e temos nossas contas para pagar. E, por mais que eu acredite que não dá para viver nossa vida com medo, talvez esse seja um conforto que os anos e anos de luta da comunidade LGBTQIAP+ trouxeram para mim. Evelyn Hugo não tinha isso. Então ela fez o que todo mundo fazia: escondeu, mentiu, manipulou e protegeu quem ela amava.
Existem caras por aí que matariam Harry se descobrissem. Este é o mundo em que vivemos.
Eu queria muito dizer que, hoje em dia, isso não acontece. E, de fato, temos grandes estrelas se assumindo como pessoas LGBTQIAP+ depois de muitos anos precisando esconder isso. Mas quantas ainda não estão?
A gente transforma a vida de pessoas famosas em um inferno. Não precisamos ir longe, Luísa Sonza, por exemplo, não pode respirar sem ser atacada na internet. A diferença é que, hoje, uma parte significativa da nossa população vai dar apoio. Ainda assim, quem somos nós para julgarmos aqueles que não querem ter que passar por tantas situações vexatórias e humilhantes?
Amar alguém não deveria nunca, em nenhuma situação, ser motivo de vergonha.
"Amar não é errado, querida. Não é”, respondi. “As pessoas é que estão erradas”.
Minha noiva demorou 10 anos para contar para a mãe dela sobre nós duas, e eu nunca tinha percebido o quanto aquilo me afetava até entrar em colapso. Estar nessa posição de ser a pessoa escondida (ou não assumida) mexe com nossa autoestima, com nosso orgulho. Eu nunca poderia julgar a Celia por sonhar ser possível amar outra mulher livremente.
Enquanto o mundo continuar cruel com todo mundo que desvia um pouco da norma, julgar quem tenta fazer o melhor que consegue para viver em paz ou viver com orgulho, me parece extremamente errado.
E, se aprendi uma coisa com Evelyn Hugo foi que, no fim das contas, quando estivermos diante de toda a nossa história, o que vai contar é o que vivemos e quem amamos, não aquilo que sabem ou dizem sobre nós.
Porque ninguém nunca sabe a história completa.
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